quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

“La Litérature et la Vie”, Critique et Clinique



Decerto que escrever não é impor uma forma (de expressão) a uma
matéria, a do vivido. A literatura tem que ver, em contrapartida, com o
informe, com o inacabado, como disse Gombrowicz e como o fez. Escrever
é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se, que
extravaza toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é
inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher, devimos-animal ou
vegetal, devimos-molécula até devir-imperceptível. Estes devires
encadeiam-se uns com os outros segundo uma linha particular, como num
romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, por
intermédio de portas, entradas e zonas que compõem o universo inteiro,
como na poderosa obra de Lovecraft. O devir não vai noutro sentido: não
devimos Homem, mesmo que o homem se apresente como uma forma de
expressão dominante que pretenda impor-se a toda a matéria; ao passo que
mulher, animal ou molécula têm uma componente de fuga que se descarta à
sua própria formalização. A vergonha de se ser um homem: haverá melhorrazão de escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de
devir-mulher, e este devir nada tem que ver com um estado de qual poderia
vie a reclamar-se. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação,
Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou
de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma
mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos
nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados
numa forma quanto mais singularizados numa população. Pode-se instaurar
uma zona de vizinhança com qualquer coisa, com a condição de que se
criem os meios literários para isso, como com o áster, segundo André
Dhôtel. Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa2. O
devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal
dentre outros animais. Mas o artigo indefinido não efectua a sua potência a
não ser que o termo que ele faz devir seja, ele próprio, desapossado doscaracteres formais que fazem dizer o, a (“o animal que aqui está”). Quando
Le Clézio devém-índio, é um índio inacabado esse, que não sabe “cultivar
milho nem talhar uma piroga”: em vez de adquirir características formais,
entra numa zona de vizinhança.



Gilles Deleuze

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