quarta-feira, 8 de abril de 2009

eita Saião!!!!


Fragmento de "A propósito do teatro"


E no entanto continua a fazer sentido. Eu diria – mais do que nunca. Porque o teatro verdadeiro, o que sem partis-pris aguenta nobremente a sua própria incomodidade e a sua própria desgraça, é um jogo legítimo com a alegria e a inquietação de existir. Misturando e combinando os ritmos da vida e da morte, entrega-se à festa do espírito com toda a naturalidade de uma cadencia lúcida que antecipa ou acompanha os grandes raciocínios da existência livre e estruturada em moldes criativos, plásmicos e salubres. Feito para dez, vinte ou duzentos espectadores, permite-nos colocar o problema nos seguintes termos: “Entrego-me ao jogo que me ajudará a libertar a minha cadencia vital e social sem alienar o meu ser profundo, aquilo que sou enquanto membro da espécie humana. Sei que tudo faz sentido porque não perco de vista que o contentamento, a diversão e o repouso não me retiram a capacidade crítica e a inquietação criadora. E, assim, sou verdadeiramente participante em algo que é inevitável mas que já não me assusta: a progressiva marcha para a velhice e a morte, com o seu brusco ou leve correr de pano”.
Ou seja: a meu ver, o teatro tal como o entendo é um exorcismo contra o absurdo e a infelicidade da vida breve, contra a senilidade social e a barbárie que nos querem impor através de mecanismos de disfarce disseminados habilidosamente em descargas pretensamente cómicas ou dramáticas. Tal pressupõe uma chamada de atenção, se assim o quiserem, para a ética e não para a moral.
Num mundo que já não sabe bem onde está a realidade (veja-se a relevância que tomaram nos últimos tempos – até que os extinguiram porque estavam a mostrar demasiado o jogo… - uns simulacros intitulados “Apanhados”, onde situações absurdas ou estranhas eram encenadas sem que as vítimas se dessem conta e que tomavam por realidade), o teatro é uma parte da receita contra a incapacidade de multiplicação da visão clara que se pode ter das coisas. Repõe no seu verdadeiro contexto os dados da questão primordial: se somos alguma coisa, o que somos necessita de máscara? Se viemos de algum lugar, esse lugar onde está? Se vamos para algum lado, porquê fazer a caminhada duma forma que nos angustia mas não nos permite utilizar as pistas que temos?
Estas são perguntas legítimas. E são muito. São, com efeito, quase tudo.
A peça de teatro a que se aludiu a dado passo (“Passagem de nível”) e que foi publicada depois de vicissitudes diversas originadas por gentes alheias à sua saída a lume, escrevi-a numa altura em que me achava penosamente entregue a ostracismos provocados pela minha incapacidade de aderir a ritmos que visam acorrentar o ser humano a manjedouras de grupo ou de sector. Foi uma espécie de resposta vital à indignidade com que tentam macular-nos frequentemente, mesmo numa sociedade pretensamente democrática. Escrita em dezoito dias, quase de jacto e praticamente sem modificações, afixa a minha crença em alguns valores tais como: o amor electivo entre seres que se encontram a despeito das misérias das épocas, a liberdade de utilizar o tempo que nos é dado viver sem estarmos dependentes de preconceitos, a busca do conhecimento que pode ser a antecâmara duma eventual sabedoria.
Tal como Thomas Mann eu acredito que “o espírito não é monolítico, é uma força encerrada na vontade de fazer a sua própria imagem do mundo, a vida, a sociedade”. E, sendo assim, permanece como uma janela aberta sobre os diversos palcos da existência onde as personagens se movem como num início de acto.



Nicolau Saião

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